Ailton Krenak, escritor e ambientalista, viu na pandemia uma oportunidade única para a humanidade fazer uma pausa e ter um novo despertar. Era uma referência ao nosso modo de viver deslocado da natureza, de uma vida mais de utilidades do que de ser, uma crítica a uma humanidade já enclausurada e excludente antes mesmo da Covid-19. Também era uma esperança de que a tragédia tivesse um lado bom, de que sairíamos dela um pouco melhores. Mensalmente, sempre no último sábado, o Professor Henrique Rajão oferece uma oportunidade similar.

Munidos de binóculos, câmeras e muita curiosidade, às 8 da manhã, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, se juntam humanos de todas as idades para o Passeio de Observação de Aves. Esperam observar e identificar espécies, fotografá-las, mas saem com muito mais. A caminhada de cerca de 4 horas, graças à magia do lugar, das aves e principalmente da energia das pessoas e do Professor, vale por um ano de ioga. É calma e prazeirosa, contemplativa e com vários convites à reflexão.

O que somos no planeta, apenas usuários, consumidores, domesticados pelo capitalismo? Ou podemos almejar um pouco mais que isso? Afinal, somos animais grupais ou indivíduos maximizadores da sua própria utilidade? O passeio mostra que, como ocorre na meditação, estar em grupo escutando, observando e conversando sobre a natureza é uma poderosa experiência.

Os economistas e biólogos se preocupam com a escassez. Na economia, a competição é estudada no terreno dos mercados, onde o homo economicus, totalmente racional, maximiza seu próprio bem estar, egoisticamente. Na biologia, a evolução mostra a sobrevivência das espécies melhor adaptadas às condições ambientais, mas com uma diferença fundamental: a ecologia mostrou que, das comunidades aos ecossistemas, as várias espécies dependem umas das outras para sobreviver. A economia tem construtos similares, conceitos como o de externalidade e coopetição. Mas uma percepção e prática menos individualistas ainda não parecem ser dominantes.

Como espécie, os humanos têm se beneficiado de 10.000 anos de condições perfeitas. Na nossa era, até mesmo os dinossauros com que convivemos, as aves, são sem dentes. Os avanços tecnológicos de que somos protagonistas trazem várias coisas maravilhosas. Mas não só, e nosso modo de viver tem posto em xeque o meio ambiente. Será que nosso comportamento econômico conseguirá evoluir para um mais amplo? Conseguiremos eventualmente parar de consumir o planeta?

Tudo é problema, e nada é problema. É preciso saber manejar, conviver, como faz o sanhaço-do-coqueiro, que aprendeu a fazer seu ninho nos cantos dos ar-condicionados e, com seu belo canto, desperta os moradores das barulhentas avenidas. A cidade também precisa saber se adaptar, preservando as matas, ampliando áreas com solo permeável, cuidando da restauração de vegetação e fauna, da reintrodução de espécies. É preciso mais estudo, mais conhecimento, mais tecnologia bem aplicada. A cidade é viável, o ser humano é viável, há que se viver, de fato, a década da restauração, como propõe a ONU.

Tudo isso e muito mais vai sendo provocado pelo Prof. Henrique ao longo do caminho. Capaz de ouvir dezenas de pios ao mesmo tempo e identificar as espécies e a que distância cada ave estádo grupo –repleto de alunos e amigos, o ornitólogo transcende, em muito, o papel de guia.

Fui andando para casa recolhendo um pouco de tudo. Você sabia que, somente no Jardim Botânico, há mais espécies de aves do que na França inteira? E que europeus, quando vêm ao Passeio, até choram de emoção? Os entendo: também chorei quando fui à Sainte Chapelle, com seus incomparáveis vitrais e concertos de violino. Segredo carioca, nosso Passeio está mais do que à altura.

Serviço:

O Passeio de Observação de Aves do Jardim Botânico do Rio de Janeiro custa apenas o ingresso no parque. Começa às 8:00 e ocorre no último sábado de cada mês. Acompanhe no Instagram da Associação de Amigos do Jardim Botânico @amigosjb as eventuais mudanças de datas. Acompanhe o Prof. Henrique em @henriquerajao. O melhor é comprar os ingressos para o Jardim Botânico no próprio site do Jardim Botânico, embora também sejam vendidos na bilheteria.