Por EDUARDO RAMOS
Fotos: fotos.pluri.art
Mastodom: @guga@mas.to
Threads: eduardo.ramos276
Insta: eduardo.ramos276
Sabino 100 Anos
Leio n’O Globo que Fernando Sabino completaria 100 anos neste mês de outubro de 2023. Mais precisamente, seu aniversário seria exatamente hoje, dia 12 de outubro, que também é o dia das crianças, talvez não por acaso. Conheci sua obra ainda menino e não larguei mais. Li tudo que pude dele e, lembro-me, queria ser escritor como ele, que, consta, decidiu pela profissão aos 10 anos de idade.
Alguns livros seus, como o Encontro Marcado e o Grande Mentecapto, lembro-me de ter simplesmente adorado. Logo que o descobri, acho que por alguma indicação do colégio e depois entre os livros de meu pai, fui lendo tudo, um livro atrás do outro. E, sem dúvida, tentei imitar seu estilo nos meus próprios escritos –mesmo aqueles sem qualquer pretenção literária.
Sabino era da turma dos irmãos Caruso, Millôr, Técio e pude encontrá-lo uma vez neste grupo. Já não lembro bem o que era, talvez um encontro político. Foi no antigo Jazzmania e Sabino tocou bateria. Era uma bateria energética, que adorei. Procurei, mas não tem ele tocando no YouTube.1 Melhor, ficou só na memória.
Fácil de ler, difícil de escrever, vejo-o em entrevista resumindo seu ofício. Talvez como já disse Drummond, a arte de cortar as palavras. Ou como o piano de Tom Jobim, sem nenhuma nota a mais.
Achei graça ver que ele já dizia que “Tudo conspira contra escrever”, antes mesmo da Internet, das redes sociais e do celular. “Escrever é a arte de sentar a bunda na cadeira”, “vencer a distância que separa você da máquina de escrever é o mais difícil”. Imagino o que ele não diria hoje.
Decido ir até a estante, abro alguns de seus livros. Vejo dedicatórias como “Desculpe pelo atraso no presente, mas valeu a pena esperar por mais um livro do Fernando Sabino”. Livros lidos, usados, com dedicatórias. Pego um deles, do qual não me lembro especialmente, Deixa o Alfredo falar! Um livro de crônicas. Leve, inteligente, cheio de tiradas. Lá pelo meio, uma citação a Drummond, “Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear” e uma crônica impagável, O Ricochete Telefônico. Do tempo do telefone fixo, de quando não se conseguia linha para discar. Lembro-me que saiam crônicas assim nos jornais impressos, numa época em que as pessoas tinham tempo para ler.
O Encontro Marcado é um livro-monumento. Não só pelo tamanho do seu valor. Virou estátua, está em frente à biblioteca pública, junto à Praça da Liberdade. Lá estão Sabino, Helio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos. Há um pau-ferro frondoso, projetos do Niemeyer de um lado e do outro e um banco para sentar e ler.
- Tem um Roda Viva impagável, de 1989. Aqui: https://youtu.be/-0YwkdS2igE?si=3LSW0JvjL-1SVJk3 ↩︎
Canto do Sabiá
Durante um dos passeios mensais de observação de aves da Associação de Amigos do Jardim Botânico, tive uma epifania. Na minha infância, uns 40 anos atrás, meu pai assobiava imitando o canto do Sabiá Laranjeira. O canto do pássaro é mais complexo, mas o assobio tirava-lhe a essência. Era pura harmonia, sinal de que tudo estava bem em casa. Quando ele insistia o suficiente, sinal de pura felicidade, minha mãe até lhe respondia, no mesmo tom.
Ali no parque, foi como se, de repente, ouvisse meu pai assoviando, em casa, décadas atrás. Como diz o Prof. Henrique Rajão, as aves são diurnas, bonitas, voam e até cantam; são verdadeiros portais de reentrada na natureza. Para mim aquele “Sabiá” foi reencontro com a casa da infância e comigo mesmo.
Consta na Wikiaves que “sabiá” vem do tupi e significa “aquele que reza muito”. E tem mais: há lenda que diz que, quando uma criança ouve o canto primaveril do Sabiá, durante a madrugada, é ”abençoada com muita paz, amor e felicidade”. Pois é setembro e, em pleno Rio de Janeiro, em meio às árvores que sobraram no meio do asfalto, a cidade respira e tem um sabiá que canta, toda noite, anunciando a primavera. Eu, que guardo uma criança dentro de mim, ouço atento ao canto do pássaro. Diário. Escuto ecos de meu pai rezando e me protegendo.
Quando saio para caminhar, às vezes vejo o cantor. Está lindo, mas a aparência é de cansaço. Imagino-o sempre só, cantando à procura de uma fêmea que nunca responde. Pois eu ensaio resposta. Não tenho o silvo poderoso de meu pai, nem a afinação do pássaro, mas respondo-lhe, na esperança de também lhe dar alguma alegria. Me ignora?
Aprendi pela Internet, o Sabiá Laranjeira é o símbolo do estado de São Paulo. Mas, depois de Castro Alves, Tom e Chico e tantos outros também homenagearam a ave, o Brasil ficou com inveja e fez dela um símbolo nacional. Tem dia próprio e tudo, o 5 de outubro de cada ano, está lá no Decreto Presidencial de 3 de Outubro de 2002: “Art. 2o O centro de interesse para as festividades do Dia da Ave será o Sabiá (Turdus Rufiventris), como símbolo representativo da fauna ornitológica brasileira e considerada popularmente Ave Nacional do Brasil.”
Feliz dia da Ave!
Um segredo carioca
Ailton Krenak, escritor e ambientalista, viu na pandemia uma oportunidade única para a humanidade fazer uma pausa e ter um novo despertar. Era uma referência ao nosso modo de viver deslocado da natureza, de uma vida mais de utilidades do que de ser, uma crítica a uma humanidade já enclausurada e excludente antes mesmo da Covid-19. Também era uma esperança de que a tragédia tivesse um lado bom, de que sairíamos dela um pouco melhores. Mensalmente, sempre no último sábado, o Professor Henrique Rajão oferece uma oportunidade similar.
Munidos de binóculos, câmeras e muita curiosidade, às 8 da manhã, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, se juntam humanos de todas as idades para o Passeio de Observação de Aves. Esperam observar e identificar espécies, fotografá-las, mas saem com muito mais. A caminhada de cerca de 4 horas, graças à magia do lugar, das aves e principalmente da energia das pessoas e do Professor, vale por um ano de ioga. É calma e prazeirosa, contemplativa e com vários convites à reflexão.
O que somos no planeta, apenas usuários, consumidores, domesticados pelo capitalismo? Ou podemos almejar um pouco mais que isso? Afinal, somos animais grupais ou indivíduos maximizadores da sua própria utilidade? O passeio mostra que, como ocorre na meditação, estar em grupo escutando, observando e conversando sobre a natureza é uma poderosa experiência.
Os economistas e biólogos se preocupam com a escassez. Na economia, a competição é estudada no terreno dos mercados, onde o homo economicus, totalmente racional, maximiza seu próprio bem estar, egoisticamente. Na biologia, a evolução mostra a sobrevivência das espécies melhor adaptadas às condições ambientais, mas com uma diferença fundamental: a ecologia mostrou que, das comunidades aos ecossistemas, as várias espécies dependem umas das outras para sobreviver. A economia tem construtos similares, conceitos como o de externalidade e coopetição. Mas uma percepção e prática menos individualistas ainda não parecem ser dominantes.
Como espécie, os humanos têm se beneficiado de 10.000 anos de condições perfeitas. Na nossa era, até mesmo os dinossauros com que convivemos, as aves, são sem dentes. Os avanços tecnológicos de que somos protagonistas trazem várias coisas maravilhosas. Mas não só, e nosso modo de viver tem posto em xeque o meio ambiente. Será que nosso comportamento econômico conseguirá evoluir para um mais amplo? Conseguiremos eventualmente parar de consumir o planeta?
Tudo é problema, e nada é problema. É preciso saber manejar, conviver, como faz o sanhaço-do-coqueiro, que aprendeu a fazer seu ninho nos cantos dos ar-condicionados e, com seu belo canto, desperta os moradores das barulhentas avenidas. A cidade também precisa saber se adaptar, preservando as matas, ampliando áreas com solo permeável, cuidando da restauração de vegetação e fauna, da reintrodução de espécies. É preciso mais estudo, mais conhecimento, mais tecnologia bem aplicada. A cidade é viável, o ser humano é viável, há que se viver, de fato, a década da restauração, como propõe a ONU.
Tudo isso e muito mais vai sendo provocado pelo Prof. Henrique ao longo do caminho. Capaz de ouvir dezenas de pios ao mesmo tempo e identificar as espécies e a que distância cada ave estádo grupo –repleto de alunos e amigos, o ornitólogo transcende, em muito, o papel de guia.
Fui andando para casa recolhendo um pouco de tudo. Você sabia que, somente no Jardim Botânico, há mais espécies de aves do que na França inteira? E que europeus, quando vêm ao Passeio, até choram de emoção? Os entendo: também chorei quando fui à Sainte Chapelle, com seus incomparáveis vitrais e concertos de violino. Segredo carioca, nosso Passeio está mais do que à altura.
Serviço:
O Passeio de Observação de Aves do Jardim Botânico do Rio de Janeiro custa apenas o ingresso no parque. Começa às 8:00 e ocorre no último sábado de cada mês. Acompanhe no Instagram da Associação de Amigos do Jardim Botânico @amigosjb as eventuais mudanças de datas. Acompanhe o Prof. Henrique em @henriquerajao. O melhor é comprar os ingressos para o Jardim Botânico no próprio site do Jardim Botânico, embora também sejam vendidos na bilheteria.
Nina Simone
Estávamos retornando de São Paulo, em 1990. Foi a primeira viagem que fizemos sozinhos, no carro de um de nós, no caso, o Uno Mille Official, do Rubem. Tocou no rádio Love Me or Leave Me, de Nina Simone. Em plena estrada, escura, inóspita, um alumbramento, uma explosão de sentidos.Eu estava no banco do carona, Sergio no banco de trás, e olhava para mim eufórico, sem se conter.
A energia e emoção da intérprete, cada palavra da letra, your love is my love there is no love for nobody else era tudo que sentíamos ou queríamos sentir aos 18 anos, por alguma mulher imaginária. E o piano tocado por ela soava para mim como um milagre da natureza, eu nunca ouvira nada igual.
Não sei quando foi, mas acho que não foi muito depois que me dei conta de que meu pai tinha um disco e ouvia Nina Simone em casa. Eu nunca dera atenção, não estava pronto. Depois da descoberta, ouvi aquele disco centenas de vezes, no mínimo. Depois veio o mp3, o streaming, documentários e vários outros achados e episódios. Como quando numa festa de encerramento de ano da Escola Sá Pereira, onde estudava minha filha, enquanto Nina cantava Ain’t Got Nothing, as meninas faziam poderosa coreografia anti-machista e anti-bolsonarista, enquanto eu ia às lágrimas, claro.
A imagem acima é do álbum mais imperdível de Nina Simone. Little Girl Blue. Não é o que meu pai tinha, o dele era uma coletânea, mas tinha várias dessas músicas. Este álbum de 1959 tem gravações perfeitas e é de quando meu pai tinha mais ou menos a mesma idade que eu quando ouvi Love Me or Leave Me pela primeira vez. Gosto de imaginá-lo ouvindo-o em 1959 e sentindo o mesmo que eu.
Este álbum, que está nos serviços de música com remixagem recente, Dolby Atmos e tudo mais, é uma dessas joias que nos permite acreditar na humanidade. Ouça várias vezes :-). Aqui no Spotify e na Apple Music, onde há a remixagem mais recente.
Clique aqui para ver uma apresentação de Love Me or Leave Me no Ed Sullivan Show em 1960.
Vários outros álbuns e faixas de Nina Simone também são imensuravelmente imperdíveis e emocionantes. Explore!
Aqui você pode a assistir interpretando For All You Know, música que, nesta gravação, já me levou às lágrimas um monte de vezes. Aproveite.
Dinamite Neles
Roberto Dinamite se foi. Ídolo do Vasco, maior rival do Flamengo, meu time. Foi um grande jogador, que vi jogar diversas vezes, não apenas no chamado clássico dos milhões, mas também contra vários outros times. Na minha memória, inclusive, acho que o primeiro jogo que vi no Maracanã foi entre Vasco e Fluminense. Sem TV a cabo, ou mesmo tanta fartura de transmissões na TV aberta, ir ao estádio era um programa familiar comum nos anos de 1970 e 80.
Roberto foi um exímio cobrador de falta, goleador nato. Era o ídolo que o Vasco precisava para fazer frente ao grande time do Flamengo e Roberto fez seu papel com perfeição. Meus colegas vascaínos o amavam. Não só foi o maior artilheiro do Vasco e do brasileirão, como também foi uma pessoa que dignificou sua profissão.
Um dos maiores exemplos disso é sua amizade com Zico, que poderia ter sido seu rival, mas foi apenas um adversário. Eu estive lá, naquele jogo de despedida de Roberto Dinamite. Eu assisti enquanto ele entrava em campo pela última vez, enquanto Zico jogava pelo Vasco e Nelson Piquet dava o pontapé inicial. Foi emocionante ver o Roberto ali, depois de tantos anos jogando pelo time que tanto amava. E, ao longo dos anos, também foi muito bonito ver a relação dele com Zico, mesmo antes de Roberto estar doente.
Outra memória forte que tenho é do saudoso narrador Januário de Oliveira, que não apenas cunhou o bordão “Dinamite Neles”, usado como nos gols de Roberto, mas também narrava, especialmente nas cobranças de falta, de forma que está indelével na minha memória de criança: “Robertô… e o gol!”, que (infelizmente) ouvi muitas vezes.
Que sua família fique bem e que os amantes do futebol sempre saibam reverenciar Roberto, chamado Dinamite por ter feito um gol, logo no início da carreira, em que a bola carregou a rede.
Pelé Eterno
O maior ídolo de meu pai era o Pelé. Francisco era paulista, corinthiano. E uma das minhas mais antigas lembranças da infância é de quando o Corinthians ganhou da Ponte Preta por 2×1, com o gol de Basílio, interrompendo um jejum de títulos de quase 23 anos. Foi uma euforia na casa, estava presente meu tio Augusto, eu tenho flashes em minha memória, tinha 5 anos.
Ao longo de toda sua vida, meu pai falava de Pelé com uma reverência absoluta. Descrevia jogadas, falava da sua importância, elogiava de mil formas. Eu, carioca, rubro-negro, embevecido pelo futebol de Zico, talvez também contaminado querer me afirmar e descontar o que o pai dizia, acho que não dava muita bola. Para meu alento, anos depois descobri que o próprio Pelé disse que Zico foi o maior que viu jogar depois dele.
Em 1979, meu pai me levou para ver Pelé jogar no Maracanã, pelo Flamengo. Foi uma das primeiras vezes que fui ao estádio. Naquela época, meu pai costumava me levar para ver vários tipos de jogos diferentes, com quaisquer times, pois havia a gratuidade no segundo tempo ou para crianças. Não lembro de ver jogos pela TV, só no estádio. E normalmente era assim, aproveitando a gratuidade. Esse jogo de Pelé pelo Flamengo, beneficente, de 1979, com Zico jogando com a camisa 9, é também uma dessas minhas lembranças eternas daquele templo. Eu já ainda tinha 6 anos e as lembranças são confusas, mas são outros flashes eternos em minha memória. Junto com os inúmeros jogos ouvidos no rádio Philco laranja, junto com minha mãe, rubro-negra fanática, como eu.
Um dia, com meu pai no Maracanã, já nos anos 80, encontramos Pelé na antiga fila para os elevadores. Aquele era um lugar mágico, e nunca vou me esquecer deste encontro. Meu pai, numa das poucas vezes que o vi reviver a criança, foi, eufórico, pedir um autógrafo. Em meu nome. Fiquei abismado de ver Pelé de perto, talvez, principalmente, em ver como meu pai ficou transformado. Dizem que Pelé tinha uma aura especial. Eu lembro de achá-lo baixo, mas havia uma inegável eletricidade no ar. Aquele abrir de portas dos elevadores, lá no último andar, que era sempre mágico, nunca fora tão especial. Pelé havia transformado meu pai novamente em criança. Com autógrafo dado no ingresso, guardado no bolso e tudo, era pura felicidade.1
A partir daí, esse o autografado passou a conviver com os recortes de Zico, normalmente da revista Placar, na parede de meu quarto. Meu pai, um contemporâneo de Pelé, gostava inclusive de dizer que tinha nascido no mesmo dia do Rei. Não era bem verdade, mas era quase. O dia do aniversário do meu pai era controverso, pois foi registrado como tendo nascido dia 26 de outubro, mas esse não foi o dia em que nasceu de verdade. Havia alguma multa que meu avô não quis pagar, por ter registrado depois. Gostava então de dizer que nasceu dia 23. O dia de Pelé. Só tinha uma pequena diferença de um ano, um detalhe.
Confesso que, futebolisticamente, nunca entendi muito bem Pelé, pois não vi. Por isso, nesses dias que sucedem sua passagem, queria recomendar o documentário Pelé Eterno. Talvez ainda surjam documentários melhores sobre Pelé, talvez até já existam e eu não os conheça. Mas foi quando eu assisti a Pelé Eterno que passei a entender a importância e a variedade de gols e jogadas do Rei. É um filme de 2004, de Anibal Massaíne Neto, que pode ser visto atualmente na Globoplay. Se você desconfia ou não entende tão bem o porquê de Pelé ser tão reverenciado, procure assistir. Tem gol, assistência, calcanhar, bicicleta, taças, depoimentos. É sensacional.
1: O autógrafo está numa caixa com guardados, que não está na minha casa atual. Vou procurar!
2: É emocionante o encontro de Pelé com Chico Buarque, que você pode ver aqui no Youtube.
Inteligência Artificial Generativa
Em 2022 vimos vários avanços na Inteligência Artificial chamada de generativa, ou seja, que é capaz de gerar diferentes tipos de novos conteúdos. Por exemplo, uma ilustração a partir de alguns comandos, o texto para um convite, ou mesmo respostas convincentes durante uma conversa. Pode parecer coisa muito futurista, mas está mais perto do que parece.
Inteligência Artificial nas Suas Fotos
Quem coleciona fotografias digitais, como eu, há quase trinta anos, sabe que achar uma foto dentre milhares é sempre difícil. Já escrevi programas no passado somente para ajudar nisso, depois passei a usar, por anos a fio, ferramentas que me permitem adicionar informações às fotografias, as chamadas meta informações. Assim, se eu fotografei um beija-flor, eu adiciono esta informação em texto à fotografia. Depois consigo buscar por “beija-flor” e encontrar as fotos. O mesmo vale para uma pessoa específica ou variados temas que eu imagine que um dia precisarei encontrar.
Já há alguns anos isso vem mudando, especialmente nos celulares. Graças à inteligência artificial que descobre padrões e aprende sobre nossas fotos, posso agora fazer uma busca por “beija-flor” mesmo sem ter feito qualquer classificação. E provavelmente encontrarei mais fotos, já que, pelo menos no meu caso, classificar todas as fotos tem se mostrando uma missão impossível ao longo dos anos. E também posso buscar por muitas outras coisas que não tive que imaginar antes, já que o computador, graças à inteligência artificial, é capaz de aprender sobre minhas fotos e classificá-las sem que qualquer intervenção humana seja necessária.
Esse tipo de inteligência artificial é baseado na aprendizagem de máquina, que é essa capacidade do computador de aprender a partir de reconhecimento de padrões. Por exemplo, no caso do iPhone, em um artigo de 2021, a Apple explica que o aplicativo usa diferentes algoritmos de aprendizagem, que rodam no seu aparelho e reconhecem pessoas.1
Esse tipo de inteligência artificial ainda não é a chamada generativa. Embora você pudesse argumentar que a classificação das pessoas ou tipos de objetos nas fotos é um novo conteúdo, quando pensamos na IA generativa, pensamos em algo realmente novo.
As câmeras de celulares, que estão no nosso bolso, são um exemplo novamente interessante. Tanto a câmera do Android quanto a do iPhone cada vez mais usam inteligência artificial também na hora em que você faz a fotografia. As câmeras detectam as cenas, procuram por olhos ou faces, ou usam algoritmos de inteligência artificial para tornar as imagens de melhor qualidade ou mais nítidas.2
Nessa situação das fotos, a inteligência artificial está te ajudando a tirar fotos melhores. Algo semelhante também acontece quando a inteligência artificial do Google Docs te ajuda a escrever melhor, sugere palavras ou mesmo cria um sumário automaticamente, feito que o Google anunciou em abril de 2022.3
Dá para passar uma vida estudando este tema. E provavelmente será uma vida divertida, repleta de novidades, reflexões éticas, impactos econômicos, culturais e muito mais. Poderíamos falar dos computadores embarcados nos carros e muito mais. Mas escrevi tudo isso porque queria falar da inteligência artificial generativa, então, vamos logo a ela!
ELIZA, O TESTE DE TURING E A AUTOCONSCIÊNCIA DAS MÁQUINAS
A capacidade dos computadores criarem conteúdo por conta própria é um objetivo antigo. No final dos anos oitenta, lembro-me de utilizar, fascinado, um software chamado Eliza. Era uma espécie de terapeuta, que conversava com o usuário, por meio de um chat. Ao menos assim eu me lembro. Na Wikipedia, é reconhecido como o primeiro programa para processamento de linguagem natural da história, criado no MIT.4 A minha memória também me diz que a Eliza, embora divertida, era primária, muito longe de poder passar no Teste de Turing.
O Teste de Turing representa um teste sobre a capacidade de um computador de se fazer passar por um humano, de ter comportamento inteligente equivalente ao de um humano. Foi introduzido em 1950 por Alan Turing, provavelmente o mais importante cientista da computação da história.5 Se você gostar de filosofia da ciência e sobre algumas das reflexões sobre o progresso da inteligência artificial, o artigo da Wikipedia sobre o Teste de Turing será uma leitura bem prazeirosa.6 Na prática, como a Inteligência Artificial esteve ocupada com coisas mais mundanas, como classificar suas fotos, não tem sido um objetivo do progresso na área simplesmente passar no teste.
Por outro lado, neste ano de 2022, um engenheiro do Google afirmou, em entrevista ao Washington Post, que um bot de inteligência artificial da empresa havia se tornado auto-consciente. Em outras palavras, o bot LaMDA teria formado uma consciência própria e teria reclamado por seus direitos como pessoa, além de ter conversado sobre religião, consciência e robótica. O próprio Blake Lemoine, que foi dispensado do Google depois da entrevista, publicou um artigo no Medium no qual conta a história toda.7
O contexto então é o seguinte: nós já usamos mais inteligência artificial do que imaginamos. Ao mesmo tempo, cada vez mais vão vir à tona reflexões que antes eram apenas hipóteses remotas da ficção científica ou estavam restritas a discussões acadêmicas pouco pragmáticas. Vamos falar então da inteligência artificial generativa e do que já veio. Depois, tentaremos abordar um pouco do que deve estar por vir.
DALL-E, MIDJOURNEY, LENSA E STABLE DIFFUSION
Em algum momento de 2001, a empresa OpenAI, possivelmente a principal líder do mundo na área de inteligência artificial generativa, anunciou que havia produzido um bot capaz de criar imagens a partir de textos. Já está disponível o DALL-E 2 e é possível você obter créditos para testes sem custo algum. Enviando imagens e textos para o bot, o computador gera as artes para você, que pode executar sucessivos refinamentos. A galeria a seguir foi gerada a partir de um refinamento após as seguintes instruções em texto: “a colorful artistic illustration of what is art, representing its plurality and importance to mankind”.
As artes ainda não parecem muito legais, mas possivelmente o problema não está no artista e, sim, em quem fez o briefing, ou seja, em mim. A galeria abaixo, gerada pelo comando “a surrealist dream-like oil painting by Salvador Dalí of a cat playing checkers” gerou resultados bem mais interessantes.
Incentivo você a experimentar o DALL-E no site da OpenAI.8 Aliás, voltaremos a falar dela em breve, quando formos abordar o ChatGPT e o futuro. Mas, antes, se você se interessou pela ideia de arte gerada por inteligência artificial, vale conhecer o Midjourney, o app Lensa e também o Stable Diffusion.
O Midjourney é um projeto similar ao DALL-E, em que algoritmos de inteligência artificial geram imagens a partir de comandos que lhes são enviados. Este funciona de uma maneira muito inusitada, por dentro do app do Discord, e é inteiramente gratuito, ao menos durante a fase beta. Você entra em um chat no qual vê as imagens que várias outras pessoas vão gerando. É meio confuso, mas vendo o que os outros estão fazendo, você também é capaz de aprender mais sobre o uso da ferramenta. Acredite: dá para passar muitas horas brincando, mexendo no comando enviado, fazendo refinamentos. Na galeria a seguir, algumas variações para um prompt pedindo novamente um gato surrealista de Salvado Dalí e outras para um gato impressionista de Vincent Van Gogh.
No caso do Midjourney, mais ainda que no do DALL-E, a minha impressão é de que, em havendo esforço por parte do usuário, chega-se a imagens verdadeiramente impressionantes, como mostra a Community Showcase.
Ainda na linha da criação de imagens, no final de 2022 fez sucesso um app chamado Lensa IA. O Lensa oferece filtros para retocar imagens, especialmente selfies. Mas o seu sucesso mesmo não foi por isso, mas, sim, pelo lançamento da possibilidade de criar avatares mágicos a partir de fotos suas, com uso de inteligência artificial. Foi algo bastante polêmico, pois você tem que enviar suas fotos para a empresa, o que gerou preocupações com a privacidade, além de questões sobre a propriedade das fotos, dos avatares. Além disso é um serviço pago, vendido por assinatura no modelo trial, o que muitas vezes é uma forma de se cobrar caro dos usuários descuidados ou que não entendem muito bem o modelo.9
Além do DALL-E e do Midjourney, uma terceira alternativa é o Stable Diffusion, que também pode ser acessado online e permite a geração de imagens do mesmo tipo, a partir de prompts de texto. Eu poderia inserir aqui mais algumas imagens de gatos jogando damas, mas é tão simples que incentivo você a experimentar, clicando aqui.
Para a felicidade dos nerds, também é possível usar o Stable Diffusion indiretamente, por meio de sua API, treinando o modelo com fotos nossas, para gerar avatares mágicos. Caso você seja um nerd, pare, reserve umas duas horas. Siga então o tutorial compartilhado no Twitter por Bruno Sartori e veja como criar, sem custo, uma instância na nuvem para criar avatares mágicos baseados em fotos suas. Você vai brincar com o Google Colab, que é um computador em que você executar comandos na nuvem, treinar um modelo de IA com suas fotos e ainda por cima poderá criar avatares mágicos para seus familiares e amigos caso também treine o modelo com fotos deles. Experimente! A seguir deixei alguns criados com fotos minhas e diferentes prompts.
Bem, se você gostou do que leu nesta seção, recomendo muito a leitura de um artigo do excelente Kevin Kelly na revista Wired, justamente sobre este tema. Ele explica os algoritmos e a situação da inteligência artificial e termina por afirmar, numa tradução livre, que, pela “primeira vez na história, os humanos podem conjurar atos de criatividade sob demanda, em tempo real, em escala, de forma barata. A criatividade sintética é uma commodity agora. Filósofos antigos se reviram em suas tumbas, mas parece que para gerar algo novo tudo que você precisa é do código certo.”10
CHATGPT, ELON MUSK, A MICROSOFT, GOOGLE E O FUTURO
Já há alguns meses atrás testei uma versão anterior do bot gerador de texto da OpenAI, o ChatGPT, e fiquei impressionado. Há alguns dias saiu uma nova versão dele e, tal qual como ocorrido com o Lensa, viralizou. Com o ChatGPT, que você pode testar de graça com uma conta da OpenAI, pode-se encomendar explicações, pedir a criação de histórias, textos para anúncios, poemas, traduções e muito mais.
Mas é muito mais mesmo. Dá para falar com ele em português, dá para perguntar sobre ele próprio e explorar a questão da autoconsciência. Você também pode pedir informações sobre um artigo qualquer de uma lei brasileira ou de qualquer outro país, ou mesmo comparações. Também dá para continuar e ir aprofundando as conversas. E ele até pode escrever algoritmos.
Novamente, é possível passar horas e mais horas testando, experimentando. A impressão que dá é de esta ser uma tecnologia impactante como o GPS ou como o Google Search. Ah, sim, o Google Search talvez esteja em risco, pela primeira vez, em décadas. Esta é a opinião de algumas pessoas.11
Como o próprio ChatGPT pode te explicar, não apenas a OpenAI tem Elon Musk entre seus fundadores, mas também a Microsoft como uma de suas investidoras e parcerias. Já é possível, na plataforma Azure, criar bots que se utilizam do ChatGPT via sua API. E também não é impossível imaginarmos futuros lançamentos, inclusive alguma ferramenta de busca baseada em chat, que talvez entregue algo que vai além do que o Google entrega ou quer entregar, já que seu modelo de negócios, ao menos hoje em dia, é quase que totalmente baseado nos links patrocinados.
“A inteligência artificial generativa é uma tecnologia em constante evolução que está mudando a forma como as empresas criam conteúdo e solucionam problemas. Com a capacidade de gerar novas ideias, imagens e soluções de forma autônoma, a IA generativa está se tornando cada vez mais importante para empresas de todos os tamanhos e setores. É emocionante ver o que o futuro reserva para essa tecnologia, e estamos ansiosos para ver como ela continuará a moldar o mundo em que vivemos.”12
1: Recognizing People in Photos Through Private On-Device Machine Learning (Apple, 2021)
2: Get the Most Out of Your Fancy Smartphone Camera (New York Times, 2020)
3: Auto-generated Summaries in Google Docs (Google Research Blog, 2022)
4: Eliza (Wikipedia, acesso em dezembro de 2022)
5: Alan Turing dá nome ao prêmio conhecido como “o Nobel da computação”, oferecido anualmente pela ACM. Sua vida foi retratada no cinema pelo filme The Imitation Game, de 2015.
6: Teste de Turing (Wikipedia, acesso em dezembro de 2022)
7: What is LaMDA and What Does it Want? (Medium, junho de 2022)
8: Dall-E no site da OpenAI (https://labs.openai.com). O site tem muito material para leitura caso você queira pesquisar mais sobre o tema.
9: What You Should Know Before Using the Lensa AI App (Wired, dezembro de 2022)
10: Kevin Kelly é autor de livros e artigos extraordinários, sendo provavelmente um dos mais importantes visionários da atualidade. Picture Limitless Creativity at Your Fingertips (Wired, novembro de 2022). Recomendo também seu livro Para Onde nos Leva a Tecnologia (Amazon), entre outros.
11: No podcast This Week in Startups, Jason Calcanis e Molly Wood brincaram de comparar as respostas do Google Search com as do Chat GPT (Youtube)
12: Texto gerado pelo ChatGPT para o comando “escreva uma frase de encerramento para um artigo sobre inteligência artificial generativa”. Cheguei a pedir para encurtar: “A IA generativa muda a forma como criamos conteúdo e resolvemos problemas. Gerando ideias, imagens e soluções de forma autônoma, ela é cada vez mais importante para empresas. Ansiando pelo futuro dessa tecnologia e como ela moldará o mundo.”
Stutz
Filme disponível no Netflix sobre a relação de um terapeuta com seu paciente, dirigido pelo ator Jonah Hill. É interessante tanto por mostrar a relação quanto por trazer para o público algumas ferramentas que o psiquiatra Phil Stutz usa com seus pacientes. Estas são acompanhadas de desenhos e ajudam o paciente a agir para melhorar.